quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A chegada em Amsterdã

Pela primeira vez piso nos países baixos, não cheguei em um horário compatível com transporte público. O avião pousou depois de meia-noite, tentei pegar o último trem direto, mas não consegui. Conversei com a moça da informação que não parecia estar muito disposta a encontrar a melhor solução. Quando ela achou a primeira solução, me ofereceu: pegar dois trens, demorando uma hora e meia. O percurso era de trinta minutos com o trem direito.

Eu sabia que o centro não ficava longe do aeroporto, perguntei quantos quilômetros de distância. Ela não soube me responder. Agradeci e fui tentar achar alguma alternativa. Sem sinal de internet cogitei fazer o caminho indicado, não quis. Fui ver quanto sairia um táxi, achei o valor demasiado alto. Lembrei que eu havia baixado como figura, antes de vir, duas alternativas: uma de trem direto, a outra, de ônibus. 

Fui procurar a plataforma de ônibus. Fazia um frio forte e ventava muito. Finalmente achei a plataforma, algo distante da saída do aeroporto. Pelo menos ali havia sinal Wi-Fi. Consegui conferir na internet que estava no local certo. Em quinze demorados minutos o ônibus chegou. Entrei e fiquei bem feliz de estar num ônibus aquecido. Ele parou em diversos pontos, e em cada um deles teve de esperar a hora de sair. Esse é o preço da organização. O trajeto demorou quarenta e cinco minutos, e só no final é que chegamos em uma área que era mais urbana. 

Já nessa área pude ver construções que tem a "cara" daqui. Chamo assim porque é a imagem que tenho tanto da Holanda, — que descobri que embora utilizemos para denominar o país inteiro, corresponde a apenas uma parte do país — quanto a Bélgica. E mais que isso, eu quando era criança tinha uns blocos de madeira nos quais uma das faces havia o desenho da fachada. Com estes blocos eu construía edifícios. Estes edifícios tinham, o que depois descobri, o padrão arquitetônico desta região. Desde então na minha cabeça eu associo tijolos em fachada à Holanda e à Bélgica.



Já chegando próximo à minha parada vi uma menina deitada no chão, com outras duas pessoas ao lado. Nesse momento me lembrei da política da Holanda com relação às drogas. Desci no meu ponto e senti um cheiro estranho, era um cheiro de mar, ou de peixe, não era agradável, mas era bem marcante. A região na qual me hospedei é típica: canais para todos os lados, construções altas e delgadas marcadas pelos tijolos, gente andando de bicicleta para todos os lados e bicicletas paradas em todos os lugares. Nunca vi nada sequer parecido. 

Do ponto de ônibus ao hotel levei cinco minutos caminhando, notei uma loja vendendo falafel e shawarma com um cartaz em hebraico, fico feliz de haver tolerância aqui. Cheguei finalmente ao hotel, por volta de duas da manhã. Falei com o recepcionista que me respondeu em algo que não era inglês. Demorei alguns segundos para me dar conta que era um português me respondendo. Uma surpresa curiosa a essa altura. Subi para o quarto, que é minúsculo, embora tenha uma janela com vista para o canal. Eu precisava dormir, cedo tinha de ir visitar a Casa de Anne Frank.

Acordei muito cedo, especialmente considerando que havia dormido depois de duas da manhã. Fiquei deitado na cama, descansando o corpo. Aproveitei para pesquisar alguns lugares aqui. Notei que o dia amanhece muito tarde, não vi luz até 7:45, sendo que era aquele breu de alvorecer. Não havia lugar para comer aberto antes das 9:00. Meu passeio com hora marcada começava às 9:15. Comi o que havia trazido comigo para comer no avião. Saí pouco antes das 9:00 e rapidamente cheguei ao local. Novamente vento e frio. 

Finalmente nos chamaram para entrar. Eu já havia conhecido na fila uma família da Colômbia, ficamos de papo o que fez o tempo passar mais rápido. Entramos e fomos a uma sala na qual recebemos uma contextualização. Eu não conhecia em detalhes a história da família Frank. Eles eram da Alemanha originalmente, isso lhes deu uma vantagem: saber o que estava acontecendo antes dos judeus de outros países. A minha família também soube e fugiu de lá para a Bélgica., onde passaram seis meses antes de embarcar para o Brasil. O que terá passado na cabeça de meus bisavós que decidiram ir para um país tão longínquo e diferente? Olhando para trás obviamente foi a decisão certa, mas o que fez eles tomarem esse caminho e não fez outros tantos tomarem?

É uma sorte que minha família tenha conseguido escapar. Eu sempre fico impressionado com as histórias. Meu tio avô, que havia sido mostrado como exemplo de ariano perfeito na sala. O mesmo tio avô que teve de ter a rápida ideia de dizer que voltava para a Bélgica quando na verdade fugia da Alemanha, para um guarda alemão. É um conjunto de acontecimentos que impressiona. Mas Otto Frank, o patriarca da família, decidiu que ficariam na Holanda e quando ele notou o que iria passar, preparou um esconderijo na parte posterior da empresa que havia fundado para poder se estabelecer em Amsterdam. A esta altura já não era possível fugir.

Isolou essa parte da casa da manufatura com uma entrada falsa: uma estante com livros fazendo as vezes de porta. Para proteger o esconderijo, as janelas eram pintadas, eles não faziam barulho durante o dia, ou seja, sussurravam uns com os outros, não puxavam a descarga, dentre outras medidas. Recebiam alimentos que eram comprados com vouchers adquiridos no mercado negro, em uma Amsterdam sofrendo racionamento. Contavam, obviamente, com a participação de algumas pessoas que arriscavam suas vidas para proteger os judeus. 

Por dois anos estiveram no esconderijo, até que foram encontrados. Não se sabe como os nazistas chegaram ao local. Uma das hipóteses é que eles estavam tentando desbaratar o comércio de tickets de racionamento no mercado negro. O resultado da descoberta foi o envio da família para campos de extermínio. De acordo com os arquivos, eles foram deportados no último trem que saiu da Holanda, fazendo a história ainda mais dramática. Dos oito que se refugiaram, apenas Otto sobreviveu. Demorou um pouco até que ele pudesse encontrar o diário de sua filha, tivesse tempo de ler o conteúdo, ação que lhe havia sido proibida por Anne, e finalmente tivesse coragem para publicar.

Essa história é conhecida por alguns motivos, primeiro porque é escrita de uma maneira muito talentosa, depois porque uma das peças que estava na situação sobreviveu, terceiro porque a protagonista ou autora não sobreviveu, trazendo um drama muito forte para a história. Mas essa é apenas umas de milhões de outras histórias. Uma história que termina de maneira tão triste é uma tragédia. Uma história que termina de maneira feliz não comove muito. E histórias não contadas deixam de ser conhecidas pelo mundo. Agora, imaginem a dor e sofrimento de tantas outras pessoas que não tiveram suas histórias contadas. 

Passei toda a experiência com um nó na garganta, uma sensação de impotência e de solidão que não me lembro de ter tido. Uma experiência particular serve como um catalisador para acontecimentos desastrosos.

Saí de lá meio perdido. Recobrei um pouco a consciência e fui buscar algo para comer. Há algumas comidas que são famosas aqui, não porque sejam típicas ou exclusivas, mas porque encontramos em todos os lugares. Fui comer uma panqueca num lugar famoso bem perto da casa da Anne Frank. Pedi o sabor maçã com bacon. Eu sei, parece estranho, mas não é. A maçã não é doce e confere ao prato acidez, a combinação é gostosa porque quebra aquela sensação que a gordura do bacon deixa na boca.


O frio da manhã havia passado, mesmo assim fui procurar um gorro e luvas. As manhãs são mais frias e a temperatura aqui está abaixo dos cinco. É melhor estar bem protegido, sobretudo com esse déficit de sono e descanso. Aproveitei também para comprar um cartão pré-pago. Viajar com um mapa interativo faz as coisas bem mais fáceis, e eu não tenho problema de estar olhando besteira na internet, em viagens eu entro num modo de operação bem focado.

Comprei tudo isso numa rua onde há muitos negócios, perto da estação Central, do Palácio real e de um shopping enorme. Fui até a estação e de lá caminhei para a sinagoga portuguesa conhecendo alguns pontos que eu havia marcado no mapa que preparei antes de vir. Vi muita coisa: torres antigas, mais canais, diversos bares e alguns coffee shops, os negócios onde se vendem produtos derivados do cânhamo. Para cortar caminho passei por uma viela, tomei um susto quando escutei um barulho de vidro: era alguém chamado clientes pela janela. Eu estava completamente desligado e demorou até que eu entendesse que estava passando pelo famoso distrito da luz vermelha. Embora eu aprove completamente a atitude holandesa de tolerar tudo com liberdade, eu me senti estranho. Isso não quer dizer que se deva proibir algo só porque algo não me agrada, não tenho o direito de interferir nisso se não há mal algum sendo produzido que possa afetar a terceiros.

Finalmente, cheguei à sinagoga portuguesa. A sinagoga é muito bonita, os móveis são feitos de jacarandá, o piso é todo de madeira, a iluminação vem de janelas e candelabros de cobre e não há calefação. Tanta madeira veio do comércio com a América do Sul holandesa, ou seja, o equivalente a Pernambuco. Toda a construção tem dependências de uso religioso e os locais tem denominação em português. É curioso notar que embora eu seja brasileiro, utilizo termos em hebraico ou yiddish para diversos assuntos religiosos, mas a sinagoga que segue o rito sefaradi tem nomes em português. Sucá, por exemplo, vira cabana. 


Segui dali para o museu judaico, lá uma senhora muito simpática me ofereceu o guia eletrônico para o passeio, notou que não sou nativo em inglês e quis saber de onde eu era, em poucos instantes começamos a conversar em hebraico. Ela me indicou o que olhar: uma exposição de um artista contemporâneo, uma exposição fotográfica e duas sinagogas do rito ashkenazi. O museu tinha alguns artigos curiosos, aprendi que Amsterdam foi o centro gráfico para livros em hebraico durante um período da história, vi a conexão deles com o Brasil, tendo até visto um quadro que imediatamente notei que retratava uma paisagem brasileira, dentre outros artigos muito interessantes. No fim da noite fui comer uma batata-frita famosa. Notei a quantidade de pássaros rondando a loja e assim que recebi meu pedido, saí de perto. 

4 comentários:

Unknown disse...

Levi na estrada tem que virar livro! Estou aí contigo. Beijos, Paty

Unknown disse...

Sensacional!

Unknown disse...

Dani,vc escreve muito bem. Uma grata surpresa !!!

Unknown disse...

Essa visita à casa de Anne Frank é impactante! Um soco na cara. Beijo da tia